terça-feira, novembro 18, 2008

Experiência mística

Bem que ela avisou que estava cansada. Ela disse isso para todo mundo e ninguém acreditou. Ela tentou sinalizar que estava para lá de esgotada e todo mundo achava frescura. E o final de semana no campo com Cacá também foi pouco – ela precisava de pelo menos 10 dias de descanso.

Aconteceu na sexta-feira passada. Tetê trabalhou feito uma maluca o dia inteiro, não teve tempo para almoçar e na noite anterior tinha bebido toooodas com duas amigas malucas. No final da tarde ela sentiu vontade de chorar sem razão. Lembrou que estava cansada e lembrou que as pessoas diziam que era besteira, que era charme dela. E decidiu comprar uma sandália nova.

Saiu do escritório andando e foi até o shopping. No caminho, um ex ligou para o celular (um ex ótimo, por sinal...) mas ela dispensou rapidamente. Entrou numa loja e começou a pedir uma sandália atrás da outra. Provava, separava, trocava pela outra, e pela outra, e pela outra... até que uma coisa na porta da boutique chamou sua atenção: um homem lindo, bem vestido, com um sapato lindo também. Por alguns segundos Tetê fantasiou ser a mulher perfeita para aquele sapato lindo, mas em seguida entendeu o absurdo do pensamento, abaixou a cabeça para trocar a sandália e... teve sua primeira experiência mística.

Ela já não estava naquela loja. Estava deitada numa cama diferente da dela, com um vestido branco diferente do pretinho que ela realmente usava. Do teto saía uma luz fraca, também diferente. E o ambiente tinha um silêncio absoluto, também muitíssimo diferente. De um lado da cama dela, de pé, um homem e uma mulher vestidos de branco. Do outro lado da cama, o ex que tinha telefonado e o homem de sapato lindo.

Então Tetê entendeu: ela havia morrido, estava no céu – ou no caminho dele, o famoso túnel de luz que as pessoas descrevem quando estão perto da morte. Tetê tentou levantar a cabeça, viu um vaso de flores brancas mas ficou tonta, uma espécie esquisita de vertigem, um ritmo lento, um labirinto, algo absolutamente sobrenatural. E aquelas pessoas continuavam ali, ao seu redor, todas de pé, olhando atentamente para ela. Tetê pensou em forçar um pouquinho a voz, mas a voz não saiu. Ela então lembrou que no céu as pessoas não usam a fala, mas a telepatia. Tentou sintonizar a mente de alguma daquelas pessoas mas não conseguiu m.... nenhuma. E começou a ficar furiosa. Por que diabos aquele povo estava ali olhando pra ela? E por que não tinha nenhum anjinho tocando harpa, nenhum arco-íris brilhando?

Então ela ouviu a voz do ex (ué, cadê a telepatia?). Ele perguntou se ela estava bem e ela respondeu que estava enfurecida. Passou as mãos pelo corpo e notou que o vestidinho branco era áspero pra caramba, definitivamente démodé. A luz tênue saía de abajur horroroso pendurado no teto e o casal ao seu lado estava vestindo uniformes de hospital. As flores brancas eram de plástico. Ouviu o ex dizer:
- Ela já está ótima. Se está brigando, já está ótima.

E eles contaram o seguinte: ela desmaiou quando estava na loja provando as sandálias. O homem de sapato lindo abriu a bolsa, encontrou o celular dela e ligou para a última chamada recebida. O ex mandou que ele a levasse para um hospital e encontraria com ele em questão de minutos.

Então tá. Tudo devidamente explicado e ela ainda furiosa. Um homem com aqueles sapatos a conhecia numa situação ridícula daquelas? E aquele ex (mesmo sendo interessante) ali, posando de responsável técnico por ela?

O médico e a enfermeira não conseguiram convencê-la a passar a noite no hospital. Ela mandou todo mundo embora do quarto e pediu ajuda para a enfermeira. Vestida, já de salto alto, roxa de vergonha, foi acertar a conta do hospital. O homem de sapatos lindos já tinha acertado tudo... e ofereceu uma carona. Ela piscou para o ex (que estava de tênis e balançava a cabeça completamente desolado), engatou no braço do desconhecido e aceitou a carona.

Ele telefonou para Tetê todos os dias. Várias vezes ao dia. Mandou flores no sábado e na segunda. E quatro caixas de bombom de cereja da Kopenhagen que ela adora. E ela aceitou. Por que? Porque esse foi o único ser vivo que acreditou que ela estava cansada (também... se não acreditasse...), que a ouviu, que foi gentil, que não fez perguntas, que não pediu nada, que não exigiu nada, que não deu bronca, que não encheu o saco. Foi o único homem que procurou fazer com que ela desacelerasse quando, na primeira telefonema de sábado, ela chorou e contou que precisava de um dia com duas horinhas a mais. Foi realmente o único que a admirou por ela ser assim tão dedicada ao trabalho, ao invés de dizer que ela era louca por trabalhar tanto. O único que perguntou se ela precisava de alguma coisa, ao invés de desfiar um rosário com tudo o que um homem precisa. E foi o único a perguntar se ela tinha vontade de passar o Réveillon no Rio. Ele não é, realmente, um anjinho?

segunda-feira, novembro 03, 2008

Cuuuuuurto circuito no campo

Tetê acha que entendeu de uma vez por todas o que significa "curto circuito". Apesar de não se tratar de um circuito "curto"... para ela se tratou disso sim! As correntes que passavam pelo cérebro de Tetê nas últimas semanas achavam, pelo menos, que precisavam de um espaço – digamos assim – menos curto (Matemáticos e físicos de plantão: estamos utilizando a tal licença poética, ouviram???)

Ela estava acelerada no trabalho e nas festas. Saía de uma reunião para outra sendo obrigada a parar no cabeleireiro no meio delas, porque tinha um jantar logo mais. Visitava uma exposição carregada de sacolas de boutiques porque aceitara um convite de última hora para um aniversário. Brigou com a caixa do supermercado que não quis aceitar o cartão fidelidade da companhia aérea, que ela jurava ser o cartão de crédito. E o curto mesmo aconteceu na última sexta-feira, quando ela levantou, comeu um biscoito do Beto e deu a ele uma xícara de café preto bem forte.

Aí ela chorou e ligou para um amigo gay lindo que tem uma chácara linda num lugar lindo. A primeira providência de Cacá foi visitá-la no final da tarde e dar uma renovada no apartamento. Mudaram vasos de lugar, inutilizaram uma mesinha de canto, saíram e encomendaram um sofá novo florido, e levaram para casa um tapete de seda bordado em tons vibrantes.

Houve – lógico – atritos profundos entre Cacá, tapete e Beto: acontece que Beto estranhou o tapete e a camiseta de cetim do Cacá. Cacá, por sua vez, xingou o Beto de despenteado, escandaloso e babão. Mas por respeito à Tetê, muitos latidos e gritinhos mais tarde, relevaram as diferenças e agiram como gente grande num meigo quadro de conciliação: Cacá no tapete, Beto no colo de Cacá, Tetê fotografando o momento sublime. E no sábado, Tetê e Cacá embarcaram para a chácara depois de deixar o Beto (que dormiu no tapete) na casa da vovó.

A casa de Cacá no meio do mato é divina! Feita de troncos imensos, com um jardim de inverno no meio da sala que invade o piso superior. Apesar de estarmos praticamente no verão, chovia e fazia frio, e os dois passaram mais tempo comendo e bebendo na frente da lareira do que em outro lugar qualquer. Saíram e deram uma volta a cavalo, mas a chuva impedia aquele salutar contato com a natureza repleta de mosquitos, aranhas e afins. Cacá dispensou os serviços do casal que toma conta da propriedade e fez questão de cozinhar pessoalmente para a amiga em curto (Surto não! Curto...). Um verdadeiro anfitrião, chiquérrimo e amoroso, que levou Tetê para ver as vaquinhas, a horta, o lago, e para tirar ovo no galinheiro, o que rendeu uma gemada maravilhosa cheinha de canela.

Nos breves intervalos daquela orgia gastronômica, Tetê deitava com a cabeça no colo de Cacá e falava, falava, falava... Cacá fazia rolinhos com os cabelos da amiga, enquanto tentava desfazer os rolinhos que se formavam dentro da cabeça dela. Tetê estava tomada por uma paz inigualável, distante de computadores, celulares, campainhas, horários, e mergulhada naquele ambiente bucólico, renovador, onde tudo era verdinho e perfeitinho. A voz de Cacá era calma, compassada, transmitia serenidade e segurança, era uma voz perfumada e permeada de palavras doces. Ele tinha um labrador quietinho, calminho, bondoso, zeloso como o dono, que ficava horas a fio aos pés de Tetê, imóvel e enamorado. Parecia um sonho, do qual ela não queria acordar.

Logo após o almoço de domingo, Cacá e Tetê voltaram para a frente da lareira e retomaram a aura angelical: ela deitando a cabeça no colo suave dele, ele fazendo rolinhos no cabelo dela ao som do Concerto de Branderburgo número 3. O labrador sentadinho aos pés dela. E de repente... um grito de terror invade a sala e Tetê é arremessada violentamente ao chão. O labrador se assusta, sai correndo e derruba os copos de conhaque de cima da mesa, enquanto os gritos apavorantes aumentam. Tetê, do chão, vê o caseiro entrar com a espingarda na mão. E eles então percebem que os gritos vêm de um Cacá ensandecido, que sapateava violentamente enquanto fazia um streap tease desajeitado. Enquanto tenta levantar do chão e alcançar o labrador desesperado, Tetê distingue uma só palavra dentre os gritos do amigo: grilo.

Era isso. Um grilo. Aquele escândalo todo foi por um grilo que descuidadamente entrou na manga do pullover do Cacá. Nada mais, nada menos: um grilo. E um singelo Cacá em curto. Surto circuito. Longo. Longa mesmo foi a viagem de volta, com Cacá se penitenciando: de quilômetro em quilômetro ele parava no acostamento, descia do carro e dava volta até chegar na janela, beijava as mãos de Tetê e dizia "sorry, sorry, darling". Foram 52 quilômetros. E 52 "sorry, sorry, darling".